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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A Viúva Inconsolável

de Nelson Rodrigues

Ela fez questão que a missa de sétimo dia fosse a melhor possível. Andou perguntando:
- Pode ser dez coroinhas? Pode?
Disseram:
- Até mais!
E ela, no seu desvario de viúva:
-Até mais? - de mãos postas, balbuciou: - Então, quero mais. Mais de dez, ouviu, papai? Mais de dez!
O pai disse que sim, que estava bem. E vamos e venhamos: quem podia discutir, argumentar com uma mulher que acabava de perder seu marido? Nas costas da filha, porém, o velho conversou com os demais parentes. De lápis na mão, ia escrevendo: três padres, dez coroinhas, música, luminárias, etc., etc. Os outros faziam sinais de aprovação com a cabeça. Dr. Novais indaga:
- Basta, não basta?
Admitiram:
- Para que mais? Já é muito!
Na data marcada, houve a missa de sétimo dia, em intenção de Fernando Gomes Campelo, marido de Mora, filha do Dr. Novais. A própria Mora, por entre as lágrimas de viuvez, contou, um por um, os três padres, um por um, os dez coroinhas. Guardou, da cerimônia, uma lembrança de cantos, de círios e de anjos. E mais tarde, já de volta com o pai, este perguntou:
- Não foi um missão, minha filha? Uma big missa?



A dor
Estava casada com o Campelo há 15 anos. Quinze! E quando foi ver, no necrotério, o corpo do marido atropelado e morto na Presidente Vargas, fartava-se de repetir, na sua alucinação: "Duvido que tenha havido um marido melhor que o meu, duvido!" Até o momento de sair o enterro, não fez outra coisa senão contar passagens da sua vida matrimonial, inclusive algumas bem íntimas. Segundo ela, a vida do casal era uma lua-de-mel sem fim; tinham, 15 anos depois, arrebatamentos de uma primeira noite. Essas expansões, diante de um morto, causavam bastante mal-estar. Parentes de um lado e de outro ponderaram, em voz baixa. "Ninguém precisa saber!" Ela desprendeu-se, num repelão de louca: "Precisa, sim! Precisa!" Referiu que, ainda de manhã, ao sair pela última vez, Campelo a beijara na boca, como fazia sempre. Mora sublinhava: "E que beijo!" Houve um momento em que se dirigiu ao próprio cadáver:
- Não é verdade, meu anjo? Não é verdade que vivemos um só para o outro? Não é verdade que tu nunca me traíste?
Parecia esperar uma resposta, uma confirmação do morto, que estava com a cabeça enrolada em gazes ensangüentadas e com os olhos pavorosamente abertos. Tiveram que agarrá-la, arrastá-la aos apelos de:
- Não faça isso, D. Mora! Calma, calma!


Obsessão
Enfim, passaram aqueles momentos terríveis. Veio, depois, a missa do sétimo dia, com a pompa que a viúva exigiu. Na volta da igreja, o Dr. Novais achou que devia ter uma conversa com a filha. Chamou-a para o gabinete e, lá, trancaram-se. Ele, em pé; ela, sentada, no seu luto severo e inconsolável. O velho pigarreia:
- Bem filha - começou - até agora eu não disse, não falei nada, porque, enfim, acho certas manifestações normais, legítimas. Mas tudo tem um limite, meu anjo.
Interrompeu, assoando-se:
- Que limite, meu pai?
Dr. Novais atrapalhou-se:
- Minha filha, em primeiro lugar você tem que aceitar o fato consumado. O seu marido morreu e, infelizmente, não há nada a fazer. Afinal de contas, você não morreu para o mundo.
Mora ergueu o rosto:
- Morri, meu pai. Estou morta, compreendeu? Morta!...
Era demais. Dr. Novais impacientou-se:
- Ora, milha filha, ora! E seus filhos? Você se esquece que é mãe? Esquece que é, sobretudo, mãe? Esquece que tem dois filhos?
Quis comovê-la com a evocação dos filhos, um menino e uma menina. Mora ergueu-se:
- Eu sempre coloquei meu marido acima do senhor, da mamãe, de tudo. Inclusive dos meus filhos. Não me mato, meu pai, porque as mortas não choram e eu preciso chorar meu marido. Só me interessa a memória do meu marido, só!
Dr. Novais saiu, dali, apavorado.


A grande viúva
Mora fez um apelo geral à família: "Tomem conta dos meus filhos." Anunciou que jamais tiraria o luto. E a partir de então desinteressou-se de tudo e de todos para viver em função de um túmulo. Queria ser a viúva eterna, irredutível. Nos primeiros vinte dias, Dr. Novais cultivava uma esperança: de que o tempo apaziguasse aquela dor obstinada e fanática. Esfregava as mãos piscando para os familiares:
- O tempo é um grande remédio. Vamos dar tempo ao tempo.
Depois começou a verificar que os dias, as semanas, os meses se escoavam, em vão. Nada mudava nos modos, sentimentos e idéias de Mora. Espalhara retratos do finado por toda a casa, da cozinha ao banheiro. Não se abria uma gaveta que não se descobrisse, lá, uma ou mais fotografias de Campelo. Numa irritação meio jocosa, Dr. Novais abria os braços: "Não sei como não há retrato, também, no galinheiro." E, um dia, foi pior: surpreendeu a filha conversando com os sapatos do Campelo. Com um máximo de tato, o velho quis chamá-la à ordem:
- Mas o que é isso, minha filha? Você não vê que é uma loucura?
Mora reagiu:
- Não se meta, papai! Eu sei o que estou fazendo! E não tenho nenhum medo da loucura!
Dr. Novais não disse nada. Mas viu que aquilo, mais que uma extravagância, era um sintoma. Foi soprar para a mulher: "Está doente! Isso é doença, no duro!" Andando de um lado para outro, esbravejava:
- As outras viúvas sofrem 48 horas e olhe lá! Será que esse negócio de amor eterno existe mesmo? É batata?


O cemitério
O marido estava enterrado há quatro meses. Pois bem. Jamais a viúva falhara um dia, que fosse, na sua fidelidade ao túmulo do bem-amado. Comparecia ela, no seu luto fechado. Chorava as mesmas lágrimas, rezava as mesmas orações e conversava hoars com a sepultura. E era óbvio que um túmulo era seu grande ou, por outra, seu único interesse vital. Não tomava conhecimento dos filhos, nem de ninguém. Com a família, as amigas, limitava-se a falar do esposo e a rememorar os seus momentos de amor. Uma das amigas arriscou a pergunta: "Será que ele merecia tanto?" Mora respondeu, com uma certeza fanática:
- Ele merecia. Fernando merecia. Nunca me traiu! E te digo mais; eu acho que sou a única mulher que não foi jamais traída!
Então, a outra, depois de vencer um escrúpulo, aventura, novamente: "Esse negócio de fidelidade é muito relativo!" Mora virou-se,chocada: "Por quê?" E a outra, vaga: "Nunca se sabe!" Mora levantou-se, insultada:
- Nunca se sabe, uma ova! Eu sei! Ponho a minha mão no fogo! Ou tu achas que eu ia chorar essas lágrimas todas por um sujeito que me tivesse traído? Não, senhora! Em absoluto!
Pouco a pouco, a família foi-se deixando tocar pela força daquele amor. Houve quem dissesse: "Ser fiel a um marido vivo não é vantagem. Bonito é a fidelidade ao que morreu". Por último, Dr. Novais parecia envaidecido do comportamento de Mora. Dizia a um e outro:
- Isso não é doença, não. É amor no duro. Amor eterno.
Parecia-lhe uma honra, para a família, que a filha fosse uma viúva singular, inconfundível, não parecida com nenhuma outra. A propósito, contava o caso de um primo longínquo. E dizia, com grandes gestos, mordendo o charuto apagado: "Meu primo morreu de barriga d'água. Pois bem. Enquanto ele agonizava, a mulher dava em cima do médico!" Concluía: "Viúva como a minha filha, nunca vi, sob minha palavra de honra!" Até que chegou o dia do primeiro aniversário de morte de Fernando Gomes Campelo. Mora acorou cedíssimo. Ainda brilhava, no céu, a última estrela da noite. Carregada de flores, foi a primeira a entrar no cemitério. E, apesar de tudo, apesar de suas lágrimas, de saudade infinita, ela teve o prazer de verificar que seu sentimento não arrefecera. Pelo contrário. Mesmo na lua-de-mel, não amara tanto o marido, com um exclusivismo tão fanático. Ao mesmo tempo que espalhava as flores, ela conversava com o túmulo:
- Tu sabes como eu fui fiel quando vivias. E, depois que morreste, eu não te traí nem em pensamento - repetia: - Nem em pensamento, Fernando!...


Surpresa
Duas horas depois, saiu do cemitério, num dilaceramento total. Na rua, porém, experimenta uma violenta nostalgia do túmulo, que era sua razão de viver. Estava no poste do ônibus e voltou chorando lágrimas. Mas quando se aproximava do mausoléu, viu alguém, de joelhos, junto à sepultura de Fernando. Moderou o passo. Era uma mulher. Perguntou, de si para si: "Está ali por quê? Fazendo o quê?" E não entendia que a outra mulher viesse enfeitar o túmulo de Fernando. Durante dois ou três minutos, e já bem próxima, contemplou a cena. A outra era uma desconhecida e ainda moça, ainda bonita. No seu luto aliviado, enterrou a última flor. E então, cai de joelhos, explodindo em soluços. Mora inclina-se, põe a mão no seu ombro: "Minha senhora..." A estranha virou-se, atônita. Mora pergunta, contida: "Era seu parente?" A mulher tem um desespero maior:
- Era meu amor! Foi todo o meu amor!
Em pé, o coração disparado, Mora pensa na sua fidelidade de todos os minutos. Olha em torno; próximo estão fazendo um mausoléu. Um dos operários é um indivíduo forte e bronzeado, de braços nus e potentes. Fora de si, ela corre: tropeça aqui e ali, levanta-se e continua correndo. Está finalmente, diante do caboclo espantado. Na ponta dos pés, abraça-se a ele e, como louca, dá-lhe um tremendo beijo na boca. Depois, vingada e feliz, foge, sem olhar para trás.
Nunca mais voltou ao cemitério.



***

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2 comentários:

leandromd disse...

Realmente, muito boa! Li esse texto hoje no livro "100 melhores crônicas brasileiras"! Recomendo a todos!

Anônimo disse...

Essa peça é meia complicada. Minha professora passou pra gente foi ruim a gente é só da 7° serie